A consciência negra de todo dia

Escrito por: : Redação Carta Educação, Carta Capital • Publicado em: 20/11/2017 – 17:29 • Última modificação: 20/11/2017 – 17:32

Dados do IPEA, e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicados pelo Atlas da Violência 2017, a cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. No último ano, houve um aumento de 22% na mortalidade de mulheres negras contrastando com a queda de 7,4% de 2005 a 2015 entre mulheres não-negras.

Por trás desses e de outros dados estão milhares de crianças, jovens e adultos sentindo no corpo, na linguagem e no imaginário as tensões de uma sociedade desigual.

Qual o papel da educação frente a essa situação? Como a escola pode se tornar um espaço privilegiado para que os estudantes se reconheçam como agentes de transformação de sua própria história e da sociedade? Para elucidar o tema, uma coordenadora pedagógica de uma escola comunitária da península de Itapagipe, em Salvador, e um educador de uma escola pública da zona Sul da cidade de São Paulo contam como trabalham a consciência negra dentro e fora da sala de aula.

Como o currículo da escola reflete o protagonismo do povo e da cultura negra?

Sonia Dias Ribeiro, da Escola Comunitária Luiza Mahin, localizada em Salvador (BA)

Pra gente, novembro é mais um mês. Participamos do movimento da cidade com outras escolas para dar visibilidade para a questão. Mas dentro da nossa escola a questão da identidade é feita o ano inteiro. Desde o início a gente integra o currículo à questão muito forte que é a árvore genealógica de cada criança. A gente trabalha com um projeto inicial “Quem sou eu?” para eles fazerem uma referência com os antepassados deles, pra gente conseguir trabalhar com a diversidade. Mesmos as crianças que tenham uma pele mais clara vão conseguir entender que as suas questões africanas podem ter vindo de um avô, de uma avó. Eles vão entender que, quando a gente tiver falando das rainhas, dos reis, das mulheres guerreiras que fazem parte de cada espaço da nossa escola, que dá título a cada sala, não vão sentir que é algo distante deles. Estamos num bairro que foi aterrado pelos nossos antepassados. Isso nos orgulha muito. Se hoje a gente não anda sobre ponte é porque pessoas dedicaram sua vida. E a gente traz isso como uma referência para as nossas crianças. Levamos para escutar a história de D. Maria, que está ali na porta, mas sabe como foi construído o bairro. Fazemos um turismo comunitário, onde a gente valoriza os principais pontos de referência dessa comunidade. Onde eles possam se orgulhar e saber que tem história e beleza na igreja de Nossa Senhora dos Alagados, que existe uma vista maravilhosa na Ponta do Barco. Fazemos com que isso seja natural para as nossas crianças. Onde eles percebam passado e futuro. A gente pensa com eles o que de melhor a gente pode oferecer ainda para esse bairro, na parte ambiental, na parte de cultura. Nas nossas assembleias, a gente leva para o lado de fora, porque quando uma criança daquelas está se apresentado, ou cantando uma música, fazendo uma dança, eles alegram uma pessoa. Essas pessoas que limpam a rua, a gente faz uma homenagem para elas. Para todo mundo do bairro se sentir pertencente a escola. E as crianças se sentir pertencente a esse local. Porque, nenhum dos dois está isolado. Um está dentro do outro.

Por Diego Elias Santana Duarte, da CIEJA Campo Limpo, em São Paulo

Esse processo pra nós é muito recente. Tem a Lei 10.639 que é do ano de 2003 (obrigatoriedade do ensino da história negro-africana, afro-brasileira, no ensino fundamental e médio). De lá para cá, houve pouco avanço comparado ao que poderia. Mas, se olharmos numa ótica mais aproximada, o avanço é muito bom. Tem as universidades com os sistemas de cotas. Muita gente olhando para o ensino de história, de geografia. A cultura periférica polvilhando dos anos 2000 pra frente, nessas questões do sarau na periferia, tudo isso permeando o currículo, num processo de descolonização curricular. No ano de 2004, um professor chamado Antônio da Silva, aqui do Cieja, fez um curso e trouxe a discussão étnico-racial. Então ele fez um primeiro encontro. O nome do evento é Seminário Étnico-Racial do Negro na Educação – Descontruindo e construindo imagem. Cada ano a gente tem uma temática. Esse ano foi o ser Ubuntu, que a gente discute com os educandos qual o posicionamento deles relacionado a temática racial. Esse ano, entramos como parte do curso Novembro Negro, da Diretoria Regional de Educação do Campo Limpo. Trabalhar dentro do Cieja Campo Limpo com a temática racial é não trabalhar somente no mês de novembro, é discutir dentro e fora da sala de aula. É montar sequências didáticas que façam os educandos refletir: por que a maioria da população negra mora na periferia, é pobre, não consegue transitar entre as classes sociais? 

Como é enfrentar a questão do racismo na comunidade?

Diego Elias Santana Duarte

Eu me identifico muito com essa questão racial. Primeiro, por ser negro. E depois, também, por ser uma pessoa interessada em discutir isso no ambiente escolar. O Brasil tem 517 anos de invasão dos portugueses e 388 anos de escravidão. Se for colocar em porcentagem, mais da metade da nossa existência como país fomos escravocratas. Isso está enraizado na nossa mente. Desde 1978 o movimento negro luta para a questão racial ser discutida para além das choramingações de escravidão e tal, mas sim pela resistência desse processo. E aí fizeram a data de 20 de novembro porque é a morte de Zumbi dos Palmares, um dos grandes líderes da nossa nação. Uma república, considerada por muitos, a primeira república de fato, do mundo. Se a gente tiver a comunidade negra adentrando a universidade, indo para as pós-graduações, assumindo as cadeiras, tendo dinheiro para pesquisa começamos a repensar esse processo.  A gente tem produção de conhecimento desde a educação infantil. Quando você cria referências para as crianças negras, e não negras também, tanto da professora, quanto do cabelo, do embelezamento, da representatividade, ela vai questionar programas de televisão, vai questionar revistas, vai questionar essa matriz cultural europeia que o Brasil ainda tenta manter, mesmo com 53% da população negra. Com tudo isso no imaginário, a pessoa se acha branco. E por quê? Muito disso por causa da televisão. Então a escola vem nessa contrapartida. O Cieja está nesse processo.

​Sonia Dias Ribeiro

Estamos em uma escola formal, mas nem sempre o pai ou a mãe têm um olhar acolhedor sobre as questões afro, sobre as religiões de matrizes africanas. Nas reuniões pedagógicas, trazemos o pai a conhecer também as histórias das rainhas, das africanas, a conhecer a comunidade, quem são as instituições que nos apoiam. Há também todo o tratamento dessas crianças em relação ao vestir e as datas comemorativas que a gente festeja. As outras que não festejamos, geralmente criamos uma discussão com os pais. Por que não fazer festa no 13 de maio? Por que prezamos e comemoramos 20 de novembro? Quem são essas pessoas, essas personalidades pra gente? No final do ano construímos um culto ecumênico onde chamamos as famílias e todas as religiões possíveis que existem dentro da comunidade com vários líderes. A questão da religiosidade é um dos pontos mais difíceis da gente fazer que o racismo não impere. Então a gente traz muito a família, porque a família vai fazendo que a escola não vire uma ilha isolada nesse combate ao racismo.

Para saber mais do trabalho das escolas citadas aqui, acesse a publicação ‘O ser e o agir transformador – para mudar a conversa sobre educação’, iniciativa do Programa Escolas Transformadoras, correalização da Ashoka com o Alana.

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